14.2.12

Diálogo e pressão para avançar na regulamentação da TV por assinatura


A nova lei da TV por assinatura (12.485) é produto da mediação entre interesses de vários setores econômicos e sociais. Foram quatro anos de debates acirrados e muita negociação – envolvendo agentes de muita força econômica e política –  até sua aprovação pelo Congresso Nacional.

Agora, em fase de consulta pública sobre a regulamentação da camada audiovisual, as principais polêmicas que envolvem a lei estão de volta, mas desta vez sendo travadas sem a presença explícita dos agentes econômicos. A tática de se movimentar nos bastidores está dificultando a identificação de aliados e adversários nesta discussão. Isso ficou claro nas audiências públicas promovidas pela Ancine para discutir as propostas de regulamentação.

Os principais questionamentos que apareceram nas audiências públicas partiram principalmente dos movimentos sociais e dos produtores independentes e se concentraram na caracterização de controle (que incide diretamente sobre a discussão do monopólio); na regulamentação do cumprimento das cotas de produção nacional e independente (incluem-se neste ponto as questões relativas à dispensa de cumprimento e, também, dispositivos de incentivo à competição); e no papel fiscalizador da Ancine.

Omissão não é esquecimento
A polêmica em torno da definição de pessoa jurídica controlada só existe porque a lei 12.485 não determina qual caracterização de relação de controle deve ser seguida obrigatoriamente pelas agências reguladoras. Mas, por outro lado, está explicito qual deve ser o conceito de empresa coligada: o que consta da resolução 191 da Anatel.

Essa omissão não foi um esquecimento do legislador. Ao contrário. Várias das lacunas no texto final não são acidentais, mas produto da correlação de forças que se estabeleceu no processo de discussão da lei.
Durante a audiência, os representantes da Ancine foram bastante questionados sobre esse tema e responderam que, uma vez que a lei não disciplinava a questão, a agência procurou se apoiar na legislação que lhe dava mais segurança jurídica para atuar num mercado com grande diversidade de agentes econômicos, por isso optou pela Lei da S/A.

A escolha do freguês
A escolha só foi possível porque, no Brasil, há mais de um critério consolidado para caracterizar relações de controle – um ditado pela Lei da S/A, outro pela Instrução 247 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo artigo 1097 do Código Civil, e há, ainda, a resolução 101 da Anatel.  Isso se não houver outros.

Algumas são mais rígidas e incluem os acordos de acionistas e outros instrumentos de gestão interna para caracterizar controle, outras não levam em conta estas relações e permitem uma interpretação mais branda.
A Ancine utilizou como parâmetro para caracterização de controle a Lei da S/A, que adota critérios mais flexíveis. Essa opção tem trazido algumas inseguranças, porque pode nublar relações de controle existentes de fato e que podem desvirtuar o espírito da lei. Um exemplo é o poder de veto de acionistas minoritários na definição de inclusão de canais por programadoras e empacotadoras.

É importante que essa questão seja acompanhada de perto pela sociedade e, inclusive, dialogada com a agência no sentido de haver, ainda durante o processo de consulta da regulamentação, dispositivos que dotem a Ancine de instrumentos para impedir que isso aconteça.  Vale observar que há vários pontos da lei que, se vistos em conjunto, podem contribuir para evitar que isso ocorra.


O que está em jogo nesta discussão são as relações monopolistas do mercado audiovisual, que para serem enfrentadas de fato é preciso haver decisão política por parte do governo.

O cumprimento das cotas
O estabelecimento de cotas foi um dos principais motivos da guerra promovida por parte considerável dos agentes econômicos contra a aprovação da lei e mesmo depois dela, já que a Sky entrou com uma ação no STF arguindo a inconstitucionalidade das cotas.

Devido à forte pressão destes agentes econômicos, foi incluído na lei um artigo que abre a possibilidade de dispensa do seu cumprimento. Está no Artigo 21 da Lei: Em caso de comprovada impossibilidade de cumprimento integral do disposto nos arts 16 a 18, o interessado deverá submeter solicitação de dispensa à Ancine, que, caso reconheça a impossibilidade alegada, pronunciar-se-á sobre as condições e limites de cumprimento desses artigos.

Como regulamentar esse artigo estabelecendo critérios transparentes e que não desvirtuem um dos objetivos da lei, o de promover o audiovisual nacional e independente?


A Ancine enfrentou esse imbróglio no artigo 33 da sua Instrução Normativa. Mas, a proposta está gerando um desconforto grande por parte do movimento social, receoso de que os pontos propostos pela agência resultem numa fragilização da lei.

Art. 33. Em caso de comprovada impossibilidade de cumprimento integral do disposto no art. 21 ou no art. 26, o interessado deverá submeter solicitação de dispensa à Ancine, que, caso reconheça a impossibilidade alegada, pronunciar-se-á sobre as condições e limites da dispensa integral ou parcial do cumprimento das obrigações, conforme regulamento específico. 
§ 1º A Ancine poderá reconhecer a impossibilidade de cumprimento integral do disposto no art. 22 desta IN, levando em consideração, entre outros, os seguintes fatores:
I - porte econômico da empresa, consideradas suas relações de vínculo, associação, coligação ou controle;
II - tempo de atuação no mercado audiovisual brasileiro;
III - perfil da programação;
IV - número de assinantes do(s) canal(is) de programação.

Muito questionada sobre esse assunto, a Ancine já informou que haverá a edição de uma Instrução Normativa específica para regulamentar o Artigo 22 da lei, e que a menção feita na IN em debate é apenas para elencar critérios gerais.

Primeiro é preciso reconhecer que quem abriu a brecha para o não cumprimento da cota não foi a Ancine, mas a própria lei. Cabe a Ancine regulamentar esse dispositivo, evitando que esta brecha a desvirtue.


Pelo que se pode verificar na redação do caput do Art 33, a Ancine está se pautando pela ótica da competição para regulamentar a matéria. Ou seja, porte econômico, tempo de atuação no mercado e número de assinantes. Do ponto de vista de viabilizar a entrada de novos agentes econômicos no mercado do SeAc a proposta pode ter sentido e, parece, um bom caminho para regular o artigo 22. É preciso explicitar, na regulamentação específica, prazos máximos para essa adequação econômica, deixando claro que os pedidos de dispensa terão validade e não poderão ser renovados. Depois disso, o solicitante deverá passar a cumprir o que está previsto na lei 12.485.

Contudo, há um quarto fator previsto no artigo 33 da IN da Ancine que não está relacionado diretamente à promoção de novos agentes econômicos, mas sim ao “perfil da programação”, que fica mais detalhado no artigo 34:

Art. 34. Em caso de comprovada impossibilidade do cumprimento integral do disposto no inciso I do art. 23 desta IN ou do cumprimento integral das obrigações do art. 22 desta IN devido a divergência significativa do perfil de programação a que se propõe o canal de programação, a programadora poderá submeter solicitação de transferência de obrigação entre seus canais de programação à Ancine, que, caso reconheça a impossibilidade alegada, pronunciar-se-á sobre as condições e limites da transferência das obrigações. (grifo meu)

Aqui pode residir uma armadilha perigosa para o cumprimento da lei. Como caracterizar divergência significativa do perfil de programação? Compreende-se que há canais dedicados a, por exemplo, exibição dos clássicos de Hollywood. Mas estes canais, ao constituírem Espaço Qualificado, não devem se adequar as cotas? O recurso da transferência de obrigação não poderá gerar uma distorção, fazendo com que canais mais “nobres” aleguem divergência de perfil para transferir as cotas para um canal secundário?

A questão aqui não é negar a pertinência desta discussão, mas talvez ganhar mais tempo para enfrentá-la adequadamente. Uma saída, então, já que haverá instrução normativa para disciplinar esse tema, seria excluir desta IN geral o inciso III que fala do perfil da programação, já que o caput prevê a observância de outros fatores.

Papel fiscalizador da Ancine
A consulta da minuta alterando a Instrução Normativa 91 para se adequar a lei 12.485 suprimiu dispositivos que podem fragilizar o papel fiscalizador que a agência passará a desempenhar. Por exemplo, a supressão do parágrafo primeiro do artigo 4º, que prevê sanções aplicadas pela Ancine aos agentes econômicos que não informarem no ato dos seus registros as relações de coligação e controle.

Num cenário em que se optou por adotar regras mais flexíveis para caracterizar essas relações, é fundamental que todos os dispositivos de fiscalização da Ancine, inclusive os que prevejam sanções, sejam mais rígidos para impedir que os agentes econômicos burlem a lei.

Questionado sobre esse tema, os representantes da Ancine afirmaram que haverá uma consulta pública para discutir as propostas de atualização da Instrução Normativa 30, que regulamenta o procedimento administrativo para aplicação de penalidades por infrações cometidas nas atividades cinematográficas e videofonográfica, e que a opção da agência será de concentrar nesta IN todas as questões relativas a estas sanções e, por isso, as exclusões na IN 91. 

Pressão e diálogo para avançar
A audiência mostrou grande disposição de diálogo por parte da Ancine, que através de seus representantes reiteraram que esta é uma matéria complexa e o procedimento é novo para a agência.

Os movimentos sociais e de luta pela democratização da comunicação precisam ter participação ativa nesse processo, sempre defendendo os interesses da população e do país.

Por isso, é fundamental encaminhar contribuições às consultas públicas que garantam a promoção da pluralidade, do conteúdo nacional e independente, apontando os equívocos e lacunas nas propostas de regulamentação da Ancine, e defendendo os dispositivos que estão sob questionamento dos conglomerados econômicos.



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